Daniella Salomão
A Proposta de Emenda à Constituição da Reforma Administrativa, elaborada por um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados (PEC 38/25), além de ampla, é bastante complexa. As normas alcançam a administração pública das três esferas de governo: federal, estadual e municipal. A Reforma veio instrumentalizar o princípio da eficiência da administração pública, previsto no art. 67 da Constituição. Para isso propõe mudanças estruturais no serviço público, umas visionárias e modernas e outra s limitadas e enviesadas, conforme veremos a seguir.
Um dos destaques da Reforma é substituir o modelo centrado no “cargo efetivo” por cinco tipos de vínculos. São eles: Vínculo de experiência (etapa qualificatória antes de ingressar definitivamente – já existente no modelo atual); Cargo com vínculo por prazo indeterminado (sem estabilidade); Cargo típico de Estado (único com estabilidade plena); Vínculo por prazo determinado; e Cargo de liderança e assessoramento (equivalente aos cargos comissionados).
Entre os pontos mais críticos dessa mudança estão a insegurança jurídica e a propensão a conflitos: juristas afirmam que multiplicar vínculos gera complexidade, disputas internas e enfraquece a previsibilidade da carreira pública; o risco de politização: vínculos mais frágeis podem facilitar pressão política, patronagem e substituição por conveniência; e a desigualdade interna: servidores desempenhando as mesmas funções podem ter vínculos diferentes, salários diferentes e proteções distintas. Isso gera conflitos, insatisfação e rivalidade.
A restrição da estabilidade também é um ponto que merece críticas. A estabilidade ficaria restrita apenas aos cargos típicos de Estado (como fiscalização, segurança, regulação e carreiras finalísticas estratégicas). Na prática, carreiras que não forem classificadas como “típicas” podem ficar vulneráveis a pressões políticas, especialmente em áreas sensíveis como saúde, educação e assistência. A estabilidade sempre foi vista como um instrumento de proteção do interesse público, não de privilégios — reduzir sua aplicação pode abrir brechas para retaliações. Não há consenso sobre o que é “cargo típico de Estado”, abrindo espaço para muitas distorções.
No tocante às críticas à estabilidade, cumpre-nos dizer que elas se baseiam, prioritariamente, na baixa qualidade ou eficiência das entregas públicas e na impossibilidade de dispensa dos servidores cujas entregam são insuficientes. Contudo, o que ninguém fala é que a gestão estratégica de pessoas nunca foi uma pauta prioritária para os governos, não há políticas públicas de gestão de pessoas, a prova disso é que na maioria esmagadora dos municípios, a área de recursos humanos limita-se a um “departamento de pessoal” com função cartorária (pagamento, registro de ponto, férias e licenças), dentro da Secretaria de Governo ou de Planejamento.
Assim, no meu modo de ver, o problema não é a estabilidade em si, mas a incapacidade dos governos de pensarem nas pessoas como ativos estratégicos das políticas públicas. Quando as pessoas são colocadas no centro, são valorizadas e desenvolvidas, elas se tornam capazes de construírem soluções criativas e inovadoras, além de gerar o impacto social que as políticas públicas necessitam.
A PEC prevê ainda avaliações de desempenho mais frequentes, com critérios mais objetivos e a consequência é a possibilidade de desligamento por insuficiência de desempenho. Acredito ser preciso trabalhar para que as avaliações sejam reais e não “avaliações proforma”, como acontece atualmente. Penso também que o que precisa ser mais frequente são os feedbacks e não necessariamente as avaliações de desempenho. É que a maioria dos servidores só recebe feedbacks uma vez ao ano, quando da avaliação de desempenho. Os feedbacks constantes são fundamentais para motivar e para ajustar a qualidade das entregas. Para isso, considero urgente e obrigatório para todas as pessoas que ocuparem cargos de liderança serem capacitadas em feedback e comunicação assertiva, já que os líderes atualmente desempenham o papel de mentor e desenvolvedor de pessoas.
Outra questão da Reforma, que a meu ver é extremamente moderna e inovadora, é a gestão por competências. Um modelo em que o desenvolvimento, a avaliação e a movimentação dos servidores passam a ser orientados não apenas pelo cargo, mas pelo conjunto de competências necessárias para entregar resultados à sociedade. O que isso significa na prática? Servidores poderão atuar em outras áreas e projetos de acordo com competências desenvolvidas e áreas de interesse.
Essa mobilidade dentro da organização abre novas perspectivas para os servidores que, ao longo dos anos de serviço público, mudam seus interesses de carreira, sentem-se estagnados, desmotivados e que desejam contribuir com seus saberes e experiências em novas empreitadas e que se viam impedidos pela vinculação ao cargo. O modelo atual engessa e embota os potenciais dos servidores que são obrigados a permanecerem na mesma função durante toda sua vida laboral, o que contraria a natureza humana que é vocacionada ao movimento e evolução contínua.
Daniella Salomão é procuradora municipal há 28 anos e especialista em liderança e desenvolvimento humano no setor público