Início Opinião A frágil gangorra do afeto

A frágil gangorra do afeto

0

José Renato Nalini

“As pessoas que encontramos profundamente, nos transformam, nos modificam, nos constroem”. Quanta verdade na clássica mensagem de Saint Exupéry. Propicia uma reflexão amarga sobre os relacionamentos. Eles também machucam. Podem acelerar aquela deterioração natural, imposta pela passagem dos anos.
Há inúmeros matizes de convívio. Costumo dizer que amigo é o familiar escolhido. Não se poderia errar. Se os laços de sangue são condicionamentos imutáveis, a relação amistosa depende de seleção.
Encontros consistentes ajudam a encarar a angústia existencial. No fundo, é permanente o questionamento insuscetível de resposta definitiva: por que nasci? O que estou fazendo neste mundo? Para onde irei depois? O que me aguarda, senão a terrível incerteza? Partilhar momentos ameniza o indisfarçável mal-estar.
Aparentemente, há jogos de “ganha-ganha”. A reciprocidade é possível. Cada qual pode oferecer ao outro uma vantagem na contabilidade consumista que impregnou a atual maneira de existir.
Só que as situações se alteram. Aquele que detinha poder, autoridade e influência, mereceu as gloríolas mesquinhas da tática das homenagens, já não ocupa função, nem cargo, nem reveste importância na hierarquia a que se apegam os peregrinos da fama.
Então é suficiente um pretexto para uma separação. Já não se vislumbra o que poderia sustentar uma relação agora desequilibrada. Quem serviu já não serve mais. O fim afigura-se próximo para aquele que acelera o declínio. Tem pouco a oferecer. O horizonte resplende promissor para quem continua em rumo ascendente.
Não perdurou o tantas vezes proclamado afeto. Prossigamos ambos nas trajetórias em direções antagônicas.
Outros relacionamentos padecem de evidente desigualdade na proporção das expectativas. A alma sensível tem a pretensão de semear sensibilidade no espírito de quem procura outros valores. Alguém adentra com a intenção de lapidar uma contingente rusticidade e espera verdadeira cumplicidade, situação que dignifica um relacionamento. Prestigia a nobreza de minúsculos diferenciais. Delicadezas, gestos singelos, mas significativos.
Só que a proposta não ressoa. Responde-se com mais do mesmo. A persistência de aparentes insignificâncias, que denunciam a indestrutível rudeza, ou incapacidade de devolver sutileza. Uma incompatível hierarquia axiológica, suficiente para decepcionar o espírito talvez excessivamente melindrável e gerar estupefação no parceiro, que sequer consegue compreender o que se passa. O silêncio se converte na única linguagem.
A gangorra fragílima dos afetos se submete a uma indecifrável álea. Não se aprende na escola a fazer boas escolhas no campo da afeição. Inexiste balança capaz de detectar o investimento amorável com que cada qual inicia e mantém uma relação. Não é fácil conviver. Há de se ter a capacidade de perdoar. O perdão é uma virtude exaltada, mas pouco praticada. O predomínio do “eu” veda iniciativas de retorno. E a continuidade dos dias se impõe, na rotina triste de quem sempre soube ser irreversivelmente só.
À espera de verazes profundos encontros, que transformem, modifiquem e construam. Se possível, com o mínimo ferimento d’alma.

Renato Nalini é desembargador, reitor universitário, palestrante e conferencista

Sair da versão mobile