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Desocupar o caminho das águas

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Dirceu Cardoso Gonçalves

Quando construiu a casa e seu negócio na margem do rio, o pioneiro o fez porque ali tinha garantido o abastecimento de água, terreno fértil para suas culturas de subsistência e, em muitos casos, o barco ou canoa era seu único meio de transporte. A chegada de mais indivíduos e famílias a um mesmo lugar fez nascer os arraiais, vilas e cidades e, com a aglomeração, apareceram os problemas. Parte deles (urbanização, serviços comunitários e públicos) foi resolvida, mas outros são continuadamente negligenciados e agravados. A ocupação indiscriminada, mesmo proibida, não é coibida e o descarte selvagem de lixo e despejos ainda é tolerado. As áreas lindeiras dos rios, que a natureza definiu como zona de alagamento durante as cheias e as encostas destinadas às acomodações do terreno, continuam ocupadas. O homem é o invasor e, como a natureza não perdoa, também é a vítima.
Era justificada a ocupação das áreas de aluvião naqueles tempos primitivos. O ideal seria que com a chegada da civilização, no ato da titulação das terras, se tivesse exigido a desocupação. Mas isso não ocorreu e, ao contrário, por interesses econômicos, sociais e até políticos, acabou se ampliando a invasão humana, os riscos e acidentes como os que temos presenciado cada vez com mais frequência. O rio usa sua margem de segurança definida há pelo menos centenas de anos e as elevações descartam suas pedras e barreiras, e acabam sinistrando construções e pessoas que ali não deveriam estar. Esses são os caminhos naturais das águas e do material de encostas, que têm de ser respeitados.
Excusa-se o passado pela falta de técnica, de conhecimento e até de veículos e outras facilidades que levassem a população a se instalar nos espigões e fora das áreas de risco. Mas há dezenas, talvez mais de uma centena, de anos, temos no Brasil conhecimento técnico e regime jurídico capazes de promover o enquadramento. O que falta é a correta aplicação das normas e leis e vontade política de mexer numa questão delicada como esta. Isso já poderia ter sido conseguido pelo ativismo ambiental, que atua no país há pelo menos quatro décadas, mas tornou-se ineficiente porque se enveredou e perdeu no viés político e ideológico.
A solução não está em piscinões, canalizações, aprofundamento de leito dos rios e outras intervenções, paliativos que resolvem no momento e transferem o drama para o futuro. É o caso, por exemplo, do Rio Tietê, em São Paulo, que o governo Fleury estabilizou na primeira metade dos anos 90, mas agora volta a transbordar porque seus sucessores não cuidaram da devida manutenção e atualização.
Resolver o problema fundiário – que se acumulou por pelo menos 200 ou 300 anos – não é tarefa para um mandato, mas para vários governos seguidos. Deveria ser política de Estado, para ser obrigatoriamente executada em 20, 30, 50 ou ainda mais anos. É preciso começar em alguma data. Primeiro criando mecanismos que impeçam novas ocupações em áreas de risco e comecem a remover os que nelas se encontram. As elevadas somas que durante anos sustentaram a corrupção hoje estancada ou pelo menos grandemente diminuída, poderiam ser aplicadas na produção de moradias e outras instalações para abrigar quem está na área de risco e na garantia de que as áreas desocupadas não sofram novas ocupações e sejam retornadas ao estado natural.
É m trabalho de longo prazo que alguém precisa ter a coragem de começar. Ou, então, continuaremos todos os anos lamentando vítimas e prejuízos. Assistir a desgraça e nada fazer para resolvê-la é, acima de tudo, grande hipocrisia. Os governos precisam agir com a certeza de que se seus antecessores tivessem um dia começado (e continuado) o trabalho, o problema hoje já estaria resolvido…

Tenente Dirceu Cardoso
Gonçalves é dirigente da
Associação de Assist. Social dos Policiais Militares de
São Paulo (Aspomil)