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Ciúme é vírus eleitoral

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Gaudêncio Torquato

A lembrança de Hannah Arendt cai bem nesse momento: “a inveja era o vício nacional na antiga Grécia”. Pois é, o presidente da República tem usado seus espaços de expressão para azucrinar o ministro da Saúde, Luiz Mandetta. Seria o ministro um arrogante, o poder teria subido à sua cabeça e, mais, quem tem o poder da caneta é ele, que comanda o país. Foi um puxão de orelhas em Mandetta. No pronunciamento da última quarta, Bolsonaro levantou bandeira branca. Em termos. Garantiu que “grande maioria dos brasileiros quer voltar a trabalhar. Essa sempre foi minha orientação a todos os ministros, observadas as normas do Ministério da Saúde”. Ou seja, repete a tese que defende, desta feita sob a obediência à visão do Mandetta.
O ministro permaneceu no cargo por intercessão dos generais do Planalto, insistindo na defesa do isolamento social, barreira mais eficaz para atenuar a devastação causada pelo Covid-19.
São muitos os exemplos de fritura de ministros ao longo dos ciclos políticos, mas nunca se viu uma situação tão constrangedora como esta última: um presidente da República destratando publicamente um dos seus mais importantes auxiliares. Que conta com maciço apoio da sociedade.
Qual o motivo de tanta desconsideração e deselegância? Ciúme? Inveja? Se for isso, Bolsonaro puxa esse vício para o tabuleiro da política.
Não é preciso conhecimento avançado para se aduzir que o presidente Jair aprecia conviver com situações inseridas no departamento das «coisas politicamente incorretas». Falar mal de ministros, dar pitos públicos, puxar a orelha de uns e outros, fazer piadas de mau gosto, apelar para símbolos sexuais e usar expressões misógenas e machistas, são pistas que apontam para a incivilidade do mandatário-mor da República.
Para quem acompanhou a vida do tenente aposentado como capitão e, depois, parlamentar por quase 28 anos na Câmara Federal, sabe que a trajetória de Sua Excelência foi uma cruzada cheia de curvas, posições discriminatórias, exaltação aos anos de chumbo e a torturadores, enfim, um roteiro pavimentado com o cimento da polêmica. Quem imaginou que, no cargo de presidente, poderia agregar algum refinamento e adotar a liturgia do poder, enganou-se. O presidente mudou pouco hábitos de outrora.
A par da ausência de saberes compatíveis com as exigências do cargo, o presidente dá sinais de que se vale de três assessores fundamentais:  os três filhos, o senador Flávio, o deputado Eduardo e o vereador Carlos, sendo este apontado como coordenador do «gabinete do ódio», acusado de fabricar fake news. O fato é que os impulsos emotivos da filharada parecem pesar sobre o processo presidencial de decisão.
Nesse ponto, voltemos ao episódio que culminou com a execração pública do ministro Mandetta. Bolsonaro teria ficado com ciúmes do prestígio adquirido pelo ministro junto à opinião pública, nos moldes de postura assemelhada quando se distanciou de Sérgio Moro e Paulo Guedes. Com um drible, Mandetta referiu-se de maneira indireta ao assunto. Contou ter voltado a ler o «Mito da Caverna», que aparece na República de Platão. «Já li umas 20 vezes e até hoje não consegui entender», frisou o ministro.
O mito platônico trata de conhecimento e ignorância. Fala da caverna escura onde homens vivem acorrentados, vendo apenas sombras. Platão – dizem os estudiosos – coloca na boca de Sócrates três imagens – o sol, uma linha divisória entre o inteligível e o mito da caverna, alegoria para explicar que a maior parte dos homens permanece na ignorância, sendo o filósofo aquele que sai da caverna e vê as coisas como são.
Seria uma ironia ao ‹mito› como Bolsonaro é chamado? Os sábios nos brindam com aulas sobre a inveja. Bacon preconizava: “O homem que não tiver virtude própria sempre invejará a virtude dos outros. A razão disso é que a alma humana se nutre do bem próprio ou do mal alheio, e aquela que carece de um, aspira a obter o outro, e aquele que está longe de esperar obter méritos de outrem, procurará se nivelar com ele, destruindo a sua fortuna”.
Dante Alighieri reservou um dos espaços do purgatório aos invejosos, que teriam os olhos costurados com arame. Nada vendo, não podem mais invejar. E Santo Agostinho definia a inveja como a tristeza pela felicidade dos outros (“tristitia alienum bonum”), a dor pelo sucesso alheio.
O presidente da República tem de sair da caverna, onde sofre com o sucesso de outros, para ver não apenas sombras, mas a verdade do mundo real.

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação