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Como desaparecer completamente

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Matheus Zucato

Ela entrou no táxi que eu havia acabado de entrar e bagunçou todas as certezas que eu tinha da vida até então. Estava com trajes profissionais, provavelmente trabalhava em escritório; ela carregava uma mochila cor de vinho que combinava com sua beleza e com os olhos cor de madeira nobre. Era uma adega personificada que entrava apressada no carro em que eu me encontrava, fugindo da chuva. Eu, seco; ela, com os cabelos escorridos na face morena, ruborizou quando percebeu que pegou um táxi com um passageiro ainda dentro. E o tempo que demoramos naquele breve e imprevisível primeiro encontro foi o tempo necessário para que eu imaginasse o primeiro beijo, o pedido de namoro, os anos se passando, o casamento proposto, o casamento, a lua-de-mel, os filhos, o envelhecimento e o nosso final, um final feliz somente nosso que foi de repente levado para longe quando sua voz me despertou, ao perguntar ao taxista: “Moço, me desculpe, posso pegar o táxi? Chove muito lá fora”. “Sim, mas é claro. Para onde você vai?” – “Lapa, por favor”, e o carro deu partida.
Não tinha sequer uma blusa para protegê-la do frio que devia sentir, visto que era noite e ela estava molhada da chuva que caía. Não conversamos. No entanto, embebedado nos vinhos de sua adega particular, pude percebê-la com meus sentidos: olhava-a de soslaio quando tinha oportunidade; num dado momento, ela estremeceu, e daí em diante não mais a olhei, pois sentia medo de estragar tudo; tudo o quê, se não existia nada entre nós além de um táxi dividido numa noite chuvosa? Talvez tivesse medo de estragar a possibilidade de algo entre nós além do táxi e da chuva. Seu perfume consumia-me o interior. Passou a se tornar um pouco mais intenso, como se sentisse seu cheiro mais próximo. E realmente estava, pois a moça dormitava e seu corpo pendia para o meu lado do banco traseiro do carro.
De seu corpo emanava um calor que eu sentia em meu rosto, mesmo a meio metro de distância, e aquele calor parecia também ter certo efeito magnético que me atraía para seu aconchego, para o toque da pele morna que tremia do frio que sentia por conta da chuva. Eu pensei em olhá-la, pois sabia que dormitava; mas, no exato momento em que cogitei transpassar a proibição que eu mesmo havia criado, o carro fez uma curva mais brusca e a moça tombou o rosto em meu braço, de modo que tivemos o toque: nosso primeiro.
Tinha menos de um segundo para pensar no que dizer; talvez me desculpasse ou esperasse ela se desculpar e dissesse que não havia problema e que entendia como é difícil manter-se acordado com uma chuva daquelas a cair; talvez ela risse e dissesse que sou engraçado e, daí em diante, pudéssemos finalmente conversar e nos conhecermos para colocarmos em prática os meus sonhos joviais e imaculados.
O segundo se passou. Ela, assustada, voltou ao seu lugar e perguntou “Taxista, falta muito para chegar?” – “Não, é na próxima rua”. Então começou a ajeitar suas coisas, a mochila cor-de-vinho nas mãos. Eu tinha provavelmente mais um minuto para pensar em dizer qualquer coisa, mas o tempo passou, a moça pagou ao taxista e desceu. Quando, de fora, enfiou o rosto para dentro do carro, meu coração disparou. Mas ela comentou, para ninguém, que havia esquecido o celular ali no banco.
Pegou-o e foi embora sem nunca dizer adeus.

Matheus Zucato é autor literário e cronista estabelecido na cidade de Monte Sião/MG