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Que Brasil queremos?

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Gaudêncio Torquato

“Quero unir-me aos que criam, que colhem, que festejam; quero mostrar-lhes o arco-íris e todas as escadas do super-homem”.
Entre uma aurora e outra, Zaratustra dormiu profundamente, acordou com a manhã passando por seu rosto e conclamou “companheiros vivos, e não cadáveres, rebanhos ou crentes”, para participar de uma nova criação e escrever novos valores em novas tábuas.
Abro esta reflexão com o canto que o profeta de Nietsche entoa, pulando por cima de “hesitantes e retardatários”, na convocação para buscar um caminho e descobrir uma nova verdade.
Que belo seria se brasileiro (a)s de todos os rincões, pobres e ricos, solitários, tristes e alegres, altos e baixos, se juntassem ao coro do profeta para instalar um país emoldurado por uma vida harmoniosa entre grupos e classes, sob a luz do respeito e da solidariedade, da grandeza e da fé.
Quão firmes seriam os laços de uma sociedade convivial, construídos com a cera do companheirismo e da fraternidade, sem o clamor do ódio e da vingança, entoando um canto uníssono e festejando tempos de paz.
Afinal, que habitat queremos construir nesse território de dimensão continental, pleno de riquezas e potenciais, aclamado por abrigar a maior reserva hidrológica do mundo, um celeiro de alimentos, ocupando a terceira posição de maior exportador de produtos agrícolas, e um dos maiores reservatórios de petróleo e gás natural?
Quão triste é constatar o grau de barbárie a que chegamos nessa quadra em que as duas bandas que formam a comunidade política destilam montanhas de ódio, sob a feiura de linguagens chulas, palavrório incompatível com o bom senso, falsidades e mentiras de todos os calibres, uso de igrejas como anzol para atrair eleitores, e, pior, inserção de crianças no palco utilitário da política.
Terríveis serão as consequências sobre o estado espiritual do Brasil em um amanhã que deixa ver sinais de trevas. Se não formos alimentados pela seiva do Bem, estaremos ameaçados a viver sob o império do Mal, retrocedendo aos tempos de barbárie. E, assim, adiando o sonho de construção de uma Nação.
Como ensina José Ingenieros, em O Homem Medíocre, países são expressões geográficas e os Estados são formas de equilíbrio político. A Pátria, porém, transcende esse conceito: é sincronismo de espíritos e corações, aspiração à grandeza, comunhão de esperanças, solidariedade sentimental de uma raça.
Enquanto um país não é pátria, seus habitantes não formam uma Nação. O que estamos assistindo nesse momento? Um insincero jogo de confabulações politiqueiras, interesses venais e promessas enganosas, embrulhadas em pacotes de falso patriotismo e de composições que alimentam a mais ferrenha disputa eleitoral da atualidade.
Em nome do povo, desvios se multiplicam na paisagem institucional. A verdadeira crise do nosso povo é a falta de casas, de comida, de emprego, de hospitais, de segurança, de lazer. A disputa que bate bumbo nos meios de comunicação tem o poder de deixar as massas longe do alfabeto político. Elas agem por impulso e o primeiro que lhes afeta é o instinto de sobrevivência, encostado nas paredes do estômago.
As formas de cooptação social, a partir da conquista do voto, exprimem um pensamento das elites dominantes. O povo, em suas extremas carências, tem dificuldades de exercer cidadania. Sua autonomia de decisão é escassa e tênues são suas vontades. Em consequência, submete-se, como ente passivo, à demagogia dos discursos e a uma engenhosidade operacional que acaba sugando suas emoções.
Quando se abre a portinha do lamaçal, começa-se a desvendar nossa identidade. Há uma pequena rua, em Londres, cheia de lojinhas, que vendem os mesmos tecidos, dos mesmos padrões e, incrível, pelo mesmo preço. Nem um centavo a mais ou a menos. Um brasileiro foi ali pechinchar. Surpreendeu-se, quando o dono de uma das lojinhas se recusou a vender o tecido. Ele vira o brasileiro sair de outra loja. Apontou: a sua loja é aquela. Naquela lojinha, cultiva-se a retidão, a lealdade, a honestidade. Um exemplo de cultura sem barganhas e emboscadas. Estamos anos luz distantes desse sonho.
Quão trágico é constatar que o animus animandi da comunidade se afina pelo mesmo diapasão.  Dá-se vazão a notícias falsas. O culto da verdade entra na penumbra. O que é vulgar encontra fervorosos adeptos, entre os que representam os interesses de facções, alguns tornando-se porta-vozes do caos.  São atores hipócritas aos quais é permitido fazer emboscadas, atuando como partícipes de uma peça canhestra.
Quão desanimador é ver o velho caciquismo dominando os padrões da política.
Confúcio, ao visitar a montanha de Taishan, encontrou uma mulher cujos parentes haviam sido mortos por tigres.
– Por que não se muda daqui? A resposta inquietou o sábio:
– Porque os governantes são mais ferozes que os tigres.
Os políticos brasileiros precisam trabalhar para, em 2023, diminuir as distâncias que separam Território, País, Pátria e Nação.

Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político