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O autismo e as leis

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Dimas Ramalho, Karina Maia e Mariana Mársico

Estima-se que existam cerca de 6 milhões de brasileiros com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). São pessoas que, embora compartilhem um núcleo de traços comportamentais, formam um grupo, no fundo, bastante heterogêneo, que abarca uma variedade de sintomas, habilidades e deficiências relacionadas à linguagem e à interação social.
Até alguns anos atrás nos referíamos a essa pluralidade de características como síndrome de Asperger e autismo leve, moderado e grave. Hoje, porém, ela é compreendida como um contínuo formado por três níveis, a depender do grau de suporte demandado pela pessoa, que pode variar nas diferentes áreas da sua vida.
Além das mudanças de nomenclatura, viu-se também, nas últimas décadas, um aumento significativo da prevalência do TEA. Segundo dados do órgão de saúde americano CDC (Centers for Disease Control and Prevention), usados como referência no mundo todo, em 2000, os Estados Unidos registravam um caso de autismo a cada 150 crianças observadas. Já em 2020, essa proporção saltou para nada menos que um caso a cada 36.
Isso não significa, porém, que há hoje muito mais pessoas com o transtorno do que há 20 anos. Na verdade, apontam especialistas, esse crescimento reflete, sobretudo, a melhora na compreensão do que é o autismo – o que redunda em critérios mais refinados de identificação –, e o maior acesso da população aos serviços de diagnóstico, além de pais, responsáveis, professores e pediatras mais bem informados sobre o tema.
Com o aumento da visibilidade e da conscientização a respeito do TEA veio também o seu reconhecimento nas leis. No Brasil, isso teve início em 2012, quando foi aprovada a Lei 12.764/12, também conhecida como Lei Berenice Piana, em homenagem a uma mãe militante da causa. A norma estabeleceu direitos fundamentais para os autistas, como o diagnóstico precoce e o tratamento adequado pelo SUS, bem como o acesso à proteção social, ao mercado de trabalho e a serviços que propiciem a igualdade de oportunidades.
No campo da educação, se comprovada a necessidade, o diploma assegura o direito dos estudantes com TEA no ensino regular a um acompanhante especializado na sala de aula, a fim de auxiliá-lo no aprendizado e nas interações sociais – algo que vem sendo reiterado por diversas legislações estaduais.
A lei de 2012 também equipara, para todos os efeitos legais, aqueles com o transtorno às pessoas com deficiência, possibilitando, assim, abrigá-los em todas as legislações que contemplem este grupo, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (13.146/15), além das normas internacionais das quais o Brasil é signatário, caso da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (6.949/2000).
Embora o conhecimento sobre o autismo tenha evoluído bastante nas últimas décadas, até hoje a medicina não conseguiu desenvolver exames ou encontrar marcadores biológicos capazes de dar a alguém o diagnóstico do transtorno. Assim, para ter acesso a esses e outros direitos, a pessoa autista precisa de um laudo que ateste a condição, produzido por um neurologista, psiquiatra ou pediatra a partir da observação do seu comportamento – o chamado diagnóstico clínico.
Entretanto, como é impossível identificar o autismo visualmente, mesmo aqueles que possuem o diagnóstico acabam encontrando dificuldades para fazer valer os seus direitos. A fim de contornar essa dificuldade, foi sancionada em 2020 a lei Romeo Mion (13.977/2020), que criou a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Emitido de forma gratuita por órgãos municipais e estaduais, o documento facilita a sua identificação e, em tese, lhe assegura atenção integral, prioridade no atendimento e no acesso aos serviços públicos e privados, em especial nas áreas da saúde, educação e assistência social.
Na ausência de normas legais expressas, ou diante do descumprimento das que existem, órgãos do Poder Judiciário têm propiciado condições mais favoráveis às pessoas com o transtorno. Nesse sentido, destaca-se a atuação da Justiça do Trabalho, que tem proferido decisões favoráveis a trabalhadores que são pais de autistas, para garantir-lhes a possibilidade de dedicar mais tempo aos filhos, um componente, em muitos casos, crucial do tratamento.
Em 2021, por exemplo, a 11ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, por votação unânime, reduziu a jornada de uma mãe de criança com autismo, sem a proporcional diminuição do salário. Na decisão, o colegiado não fixou o prazo de validade da medida, pois entendeu, corretamente, que a situação do filho da trabalhadora era permanente.
Mais recentemente, o próprio Tribunal Superior do Trabalho, aplicando diretamente normas de direitos fundamentais da Constituição, estendeu o benefício da redução de jornada – já previsto no Estatuto dos Servidores Públicos Federais – a empregados da iniciativa privada, dada a ausência de regras específicas na Consolidação das Leis do Trabalho. O Supremo Tribunal Federal, no começo de 2023, já havia feito o mesmo para o restante do funcionalismo público.
Se a proteção da pessoa autista tem conhecido importantes avanços no campo legal, é fundamental ressaltar que há ainda uma distância, para não dizer um abismo, entre o que prescrevem as leis e a sua aplicação cotidiana. No dia a dia, pais têm que lutar na Justiça para poder ter mais tempo para cuidar de seus filhos, o acesso ao mercado de trabalho segue cheio de obstáculos para pessoas com TEA, faltam acompanhantes especializados nas salas de aula e conseguir tratamento ou mesmo um diagnóstico no SUS pode se converter numa verdadeira odisseia.
Reconheça-se que a inclusão nem de longe é uma tarefa simples. Contudo, a crescente conscientização em torno do autismo indica que esse é, felizmente, um caminho sem volta. Até porque, do contrário, estaremos relegando milhões de brasileiros a uma espécie de cidadania de segunda classe.
 

  • Dimas Ramalho é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
  • Karina Maia é coordenadora executiva de saúde da pessoa com autismo no município
    de Araraquara/SP.
  • Mariana Mársico é advogada e professora, especialista em direitos das pessoas com
    transtorno do espectro autista