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Há algo de podre no reino da Dinamarca

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Alexandre Rollo

Em artigo que escrevi dias atrás procurei traçar um paralelo entre o atual sistema eletrônico de votação/apuração e o sistema anterior que utilizava urnas de lona, cédulas de papel, com apuração manual voto a voto. A intenção daquele artigo foi deixar claro que, por pior que fosse a urna eletrônica (e ela está longe de ser ruim), ainda assim houve tremendos avanços em relação àquilo que existia no passado.
Naquele artigo frisei que o sistema anterior era bizarro (especialmente em relação à apuração dos resultados), sem entrar em maiores detalhes acerca do nosso sistema eletrônico de votação. Alguns amigos advogados que são críticos ao sistema eletrônico (sim, ainda os tenho), me disseram então que o problema não era a urna eletrônica propriamente dita, mas sim a questão da totalização dos resultados (onde votos dados ao candidato “A” poderiam migrar para o candidato “B”), bem como na “insistência da Justiça Eleitoral” em não aceitar o voto impresso que seria emitido pela própria urna eletrônica, ficando armazenado em local próprio para futura e eventual auditoria/recontagem.
Pois bem, neste curto espaço vou dizer algumas coisas sobre as urnas eletrônicas. Em agosto de 2021, quem rejeitou e arquivou a PEC que propunha o voto impresso foi a Câmara dos Deputados (não a Justiça Eleitoral). O placar dessa votação foi de 229 votos a favor, 218 contra e uma abstenção (448 votos computados).
Como a aprovação de uma PEC exige no mínimo 308 votos, ela foi arquivada. Ou seja, os representantes do povo, eleitos pelo povo através das urnas eletrônicas, rejeitaram o tal “voto impresso auditável”.
Essa conta, portanto, não é da Justiça Eleitoral. Mas sem o “voto impresso auditável” é possível ter segurança no sistema eletrônico? Positivo e operante. Sim. Isso é possível. No que toca à fase da votação é preciso que se diga que as urnas não são interligadas e não são conectadas à internet. Isso significa que qualquer programa malicioso que transferisse votos de “A” para “B” (software), precisaria ser rodado em cada uma das urnas de forma individualizada e presencial (não pela internet, já que as urnas não são conectadas à rede mundial de computadores).
Não bastasse isso, o tal programa malicioso não rodaria na urna eletrônica. A própria urna o denunciaria. É impossível inserir e rodar programas estranhos nas urnas eletrônicas, cujas inseminações são feitas por pessoas diferentes, umas fiscalizando as outras. Na véspera da eleição, são sorteadas urnas que estariam prontas para utilização, mas que vão para o processo de votação e apuração paralelas (auditoria), onde os votos são filmados e os resultados são checados, justamente para que se saiba se os votos dados são fielmente registrados pela máquina. Isso é feito há anos e nunca se verificou qualquer fraude.
Os resultados sempre são fiéis aos votos efetivamente registrados e filmados. Restaria, então, a totalização dos votos. Nessa fase também existe a possibilidade de auditoria, bastando a qualquer partido retirar os boletins de urna de cada urna utilizada, somando os votos registrados nesses BU’s, para que se tenha a totalização paralela dos votos, que deverá bater com aquela divulgada pela Justiça Eleitoral.
Até hoje nenhum partido se animou em se organizar para isso, embora isso seja possível.
Eles acham muito trabalhoso e se dispensam essa possibilidade de auditoria paralela é porque, no fundo, confiam na fase de totalização. Ademais, para aqueles que defendem o “voto impresso auditável” fica a pergunta que não quer calar: a contagem desse “voto impresso auditável” um a um também não seria algo muito trabalhoso?
Percebam, portanto, que o problema não são as urnas eletrônicas. O problema é que o processo eletrônico foi eleito como bode expiatório nos últimos três anos e meio. Como diria Hamlet, “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.

Alexandre Rollo é advogado, especialista em Direito Eleitoral, conselheiro estadual da OAB/SP, Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP