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Tórtola Valência

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José Renato Nalini

Nunca ouvira falar em Tórtola Valência. Tomei conhecimento dela com a leitura das memórias de Menotti del Picchia, “A Longa Viagem”, no volume que engloba o período de 1918 a 1930.
Ela chegou a São Paulo com a fama de ser uma das melhores bailarinas do mundo. Havia dançado em Madrid, sua terra, em Paris, Londres, Viena e Roma.
Constava que havia sido uma das mulheres pelas quais D’Annunzio havia se apaixonado. Ela foi cercada de muito carinho pela juventude paulistana, ávida por novidades europeias.
A imprensa da capital bandeirante só falava dela. Ela encantava, embora se trajasse de maneira exótica. Diz Menotti que usava: “uma espécie de túnica de maneira que, mantendo seu corpo elegante, não lhe denunciava as formas”. Seja como for, “tinha olhos divinos. A cabeça era bela e a boca ardente. Impossível fixar a idade naquela linda máscara já estereotipada numa beleza convencional sempre idêntica nos clichês e nos cartazes”.
O cerco dos moços paulistas era discreto, porque ela estava sempre acompanhada de um secretário carrancudo e Oswald de Andrade garantia ter visto que ele escondia uma navalha toledana no cano da bota.
Fez-se tanto alarido em torno à bailarina, que o presidente Washington Luiz – então a governar São Paulo e era esse o título usado – quis conhecê-la. Pediu que não fosse identificado. Foi apresentado como “Luiz”, redator do Correio Paulistano. Bastaram cinco minutos e ele se despediu. À saída, falou para Menotti: – “Essa mulher não dança!”.
Foi um vaticínio. A exibição foi um fracasso. Municipal apinhado. O auditório se decepcionou com o corpanzil da bailarina. Menotti compara sua performance àquele balão de festa junina que fica aceso, …mas não sobe! A plateia ficou inquieta e em seguida o tumulto: rumorosa vaia.
Menotti indagou a Washington Luiz como ele percebera o fiasco. O estadista respondeu: “Vocês são moços e ainda renitentemente ingênuos. Enquanto sua dançarina andava pelo salão, ela eliminava a beleza do rosto que tanto encantou vocês, para denunciar o pesado do corpo, a gordura das pernas, a falta de flexibilidade dos movimentos. Essa dançarina já devia estar há muitos anos arquivada!”.
O Brasil continua a contar com Tórtolas Valências na política partidária. Muita fama, muito palavrório, mas não conseguem entregar aquilo que prometem na propaganda eleitoral. São falácias. Logros. Balões que não sobem, dançarinos que não sabem dançar.

José Renato Nalini é reitor universitário, docente de pós-graduação presidente da Academia Paulista de Letras