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O sentimento de Eu e a liberdade de ser em nossa existência

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Beatriz Breves

Estamos tão acostumados a conceber o universo pela visão mecanicista newtoniana, que vislumbra a natureza através de uma realidade materializável, na qual teria origem a realidade psíquica, e por isso consideramos ser assim. Entretanto, para além desta visão, concebendo a natureza como um complexo vibracional uno, inteiro e indivisível, o ser humano é compreendido como um ser vibracional, cuja experiência de si mesmo é o sentir. Por essa visão, a realidade psíquica se apresenta como uma expressão do sentir, revelando-se de forma autônoma e independente da realidade materializável.
O documentário escrito e dirigido por Jennie Livingston, Paris is Burning, citado em meu livro “Entre o mistério e a ignorância o desvendar da psique humana” (2021), apresenta uma pessoa falando sobre o próprio sentimento: – “Não sinto nada masculino em mim, exceto, talvez, o que eu vejo aqui embaixo (…) Acho que é por isso que quero a operação de troca de sexo pra ficar completa”. Esse relato é um bom exemplo para demonstrar que a realidade materializável não é suficiente para definir uma identidade, pois, também, se torna necessário considerar a psíquica, já que, se pela realidade materializável essa pessoa é um homem (XY), pela realidade psíquica é uma mulher.
Entretanto, sendo o ser humano um complexo bio/psíquico/social, não é possível isolar tal complexidade. Isso porque negar a realidade materializável é negar a existência humana enquanto espécie animal. Ao mesmo tempo, negar a realidade psíquica é negar o sentimento de “Eu”. De fato, vertentes da identidade que se superpõem na existência social.
Em meu livro também apresento as chamadas “Crianças Selvagens” que, criadas por animais, assumiram a identidade de cães, galinhas, etc., demonstrando a necessidade da referência humana personalizada para um ser humano se constituir e se sentir como pessoa. Assim, não devemos cometer o equívoco de desvalorizar nenhuma das realidades, o que empobreceria a condição humana em sua complexidade.
Talvez a dificuldade esteja em reconhecer que, apesar de superpostas, funcionam com lógicas diferentes. Pensar a realidade psíquica com a lógica da realidade materializável, e vice-versa, valendo-me de uma metáfora, seria o mesmo que pensar os telefones antigos de disco com a lógica dos atuais celulares. Isto porque a lógica da realidade materializável é a Booleana, que propondo o sistema binário, só pode assumir dois estados 0 (zero) ou 1 (um), o que no caso da identidade se reduz a XX ou XY, definida pelo padrão biológico. No que diz respeito à lógica da realidade psíquica é a Fuzzy ou difusa, que assume diversas possibilidades de números reais, o que no caso da identidade possibilita LGBTQQICAPF2K+… entre tantas outras que existem e ainda possam surgir.
Então eu diria que a discussão não emerge de um conflito entre realidades, mas da precária valorização e compreensão da realidade psíquica, com seus mais de quinhentos sentimentos. Sendo ativados e interagindo entre si, eles norteiam a qualidade de vida de uma pessoa e do convívio social.
Concluo com o que escrevi em “Falando de Sentimentos com Beatriz Breves” (2019), sobre o fato de que muitos não se dão conta de que “Eu” é também um sentimento: Eu, que se faz sentir através do sentimento de continuidade durante a vida, e da sensação de finitude na hora da morte. Sendo o maestro de todos os sentimentos que nos tocam, é o regente e a música da sinfonia, a qual nos torna Ser em nossa existência.

Beatriz Breves é psicóloga, psicanalista, física e psicoterapeuta. Sua especialidade é a Ciência do Sentir e os mais de 500 sentimentos listados durante 35 anos de pesquisa