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Revolver o arquivo da memória

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José Renato Nalini

A requisição da vida contemporânea é hostil ao saudosismo. Pensa-se no hoje, com seus desafios e no amanhã, cada vez mais incerto. O passado não tem vez.
Todavia, há indivíduos singulares, espécimes quase totalmente desaparecidas, que se apegam ao ontem. São aqueles que guardam fotos, recortes de jornais e missivas. Havia um tempo em que se escrevia carta. E muitas pessoas eram contatos epistolares muito assíduos.
Esses pequenos – ou extensos – relatos de momentos muito delimitados na esfera temporal, vão ocupando espaço e, chega um dia, vem a necessidade de se pensar se eles devem permanecer arquivados ou se destinam ao lixo.
Para quem é sensível, a questão não se põe. Como destruir aquelas emoções vertidas em palavras escritas por seres que já se foram e que nunca mais poderão repeti-las? Parece heresia ou pecado mortal livrar-se de pedaços d’alma que um dia fizeram alguém se abrir em confidências com quem considerava digno delas.
Muitas vezes já tentei organizar minha correspondência passiva. Tenho cartas de amigos queridos, a maior parte deles já a residir no etéreo. O resultado é que não consigo me desfazer desse acervo emotivo.
Sei que o tempo cuidará disso, quando eu não estiver mais aqui. Por enquanto, a cada releitura eu consigo me transportar para aquela fase existencial. Impregna-me idêntica sensação de juventude, ou de absoluta crença num futuro radioso, que – de certa forma – chegou a acontecer.
As pessoas que nos fizeram sentir uma sensação gostosa de pertencimento, qualidade que nem todos possuem, continuam a residir em nossa memória. Coisa fabulosa essa caixinha milagrosa onde conseguimos recuperar um passado que não volta mais.
Minha admiração por Cecília Meireles só cresceu depois de conhecer melhor sua obra e me encantar com o poema em que ela afirma que os jardins da memória “só a mim pertencem”. Fez-me acreditar que só eu tenho a chave deles, para percorrê-los quando me apetecer. Só eu consigo neles adentrar e a me transformar, magicamente, no garoto, no menino, no adolescente, no enamorado, no adulto, nas diversas passagens pelas quais a dádiva existencial me permitiu passar.
Enquanto houver memória, valerá a pena prosseguir.

José Renato Nalini é reitor universitário, docente de pós-graduação e presidente da Academia Paulista de Letras