Início Opinião Saudade das cartas

Saudade das cartas

6473
0

João Baptista Herkenhoff

Da mesma forma que proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração Universal dos Direitos da Criança, a ONU também proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Idoso.
O idoso tem direito de continuar a viver em sua própria casa, cidade e ambiente social. Tem direito de decidir que tipo de assistência prefere. Cabe ao governo o dever de assegurar ao idoso uma renda adequada à sobrevivência digna.
Concordo com tudo isso, mas acho que se omitiu a proclamação de um dos direitos do idoso: o direito à saudade.
Nestes tempos em que vivo os altos e baixos da Terceira Idade, fui surpreendido pelo saudosismo. A primeira saudade que me acudiu foi a saudade das cartas.
Sou do tempo das cartas por via postal, que carregavam um certo mistério. Aderi à internet, aos e-mails, pela praticidade desse tipo de comunicação, mas tenho saudade das cartas de antigamente.
Os e-mails também podem ter muita força afetiva, mas as cartas tinham um sabor especial. A primeira beleza das cartas é que dependiam da entrega e o carteiro era esperado com ansiedade e alegria.
Não foi à toa que a alma de Pablo Neruda atingiu culminâncias em “O Carteiro e o Poeta”. Numa perdida ilha do Mediterrâneo, um carteiro recebe a ajuda do poeta Pablo Neruda para, através da poesia, conquistar o amor de Beatrice, sua eleita. O carteiro, que era o mediador da correspondência do poeta, aprende, aos poucos, a traduzir em palavras seus sentimentos pela amada. Em troca, Mário, o carteiro, foi o interlocutor do poeta, mostrando-se capaz de ouvir suas lembranças do Chile e compreender as dores do exilado.
Tenho também saudade do flerte. Hoje já não se flerta mais. Flerte, que coisa linda!
Mulher objeto? De forma alguma. Mulher destinatária da admiração, do encantamento, da magia. Suprimiram-se as etapas do amor. Numa sociedade capitalista não se perde tempo. O tempo destinado à poesia, numa sociedade de consumo, escrava do ter, desalmada, é tempo perdido.
Mas temos de reagir. Salvaguardar a poesia porque poesia é humanismo.
Que mundo triste seria este mundo se desaparecessem os poetas.
“Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam as palavras nos lábios, ao dizê-las, esquece os teus cantares. Já não soam. Cantar é mais. Cantar é um outro alento. Ar para nada. Arfar em deus. Um vento” (Rainer Maria Rilke, tradução de Augusto de Campos).
“O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. E  os que leem o que escreve, na dor lida sentem bem, não as dores que ele teve, mas só as que eles não têm. E assim nas calhas de roda gira, a entreter a razão, esse comboio de corda que se chama coração” (Fernando Pessoa).

João Baptista Herkenhoff é juiz de Direito aposentado e escritor, estabelecido no Estado do Espírito Santo (ES)